PORTUGUEIS
II PRONUNCIAMENTO LATINO AMERICANO
POR UMA EDUCAÇÃO PARA TODOS
II Encontro de Signatários do Pronunciamento Latino americano
e I Encontro Presencial da Comunidad E-ducativa
(Buenos Aires, 8-11 de Setembro, 2010)
1. PREÂMBULO
Em 1990 foi lançada em Jomtien,Tailândia, a iniciativa mundial de Educação Para Todos (EPT), organizada e convocada por UNESCO, UNICEF, Banco Mundial, PNUD e Fundo de População das Nações Unidas (FNUAP). Em Abril de 2000 realizou-se em Dacar, Senegal, o Fórum Mundial de Educação, onde se avaliou o avanço das seis metas da EPT. As metas não se haviam cumprido, e, por isso, decidiu-se adiar o prazo por mais 15 anos.
Por ocasião do Fórum de Dacar, um grupo de educadores latino americanos redigiu o Pronunciamento Latino americano por uma Educação Para Todos, um posicionamento crítico, partindo da América Latina e Caribe (ALC), em torno do avanço da EPT e do desenvolvimento da educação em geral. Milhares de pessoas e organizações, dentro e fora dessa região, aderiram ao Pronunciamento, provenientes de governos, partidos políticos, universidades e centros de investigação, sistemas escolares, ONGs, organizações docentes, comunitárias e indígenas, associações estudantis, empresas privadas, organismos eclesiais e agências internacionais.
Em Outubro de 2001 tivemos o I Encontro Presencial de Signatários do Pronunciamento, no marco do Fórum Mundial de Educação (Porto Alegre, Brasil, 24-27, Outubro de 2001). Em Fevereiro de 2002 criamos a Comunidad E-ducativa (CE), a comunidade virtual de signatários, que vem funcionando sob a moderação de Rosa Maria Torres, uma das redatoras do Pronunciamento Latino americano. Todo esse processo, iniciado em 2000, tem sido realizado sem dinheiro ou financiamento de nenhum tipo, como um serviço público e gratuito do Instituto Fronesis. Além da rede em espanhol, contamos com Ed-Community, uma rede em inglês para os signatários anglófonos.
· Carta rechaçando a nomeação da Sra. Bush como Embaixadora da Década das Nações Unidas para a Alfabetização, por parte do então Diretor Geral da UNESCO 2003).
· Carta pelo Não à Troca da Dívida por Educação, circulada para adesões e enviada à XIV Cúpula Ibero americana (São José, 19-20 Novembro 2004) e posteriormente à XVI Cúpula Ibero americana de Chefes de Estado e de Governo (Montevidéu, 27-28 Outubro 2006).
A vinte anos do início da EPT e a dez anos de distância daquele Pronunciamento, vimos a necessidade de atualizá-lo e produzir um segundo Pronunciamento. Esse documento, que apresentamos aqui para difusão ampla e adesões, surge do I Encontro Presencial de Comunidad E-ducativa (Em memória de Pablo Latapí Sarre) que organizamos em Buenos Aires, a 8-11 de Setembro de 2010. Ao mesmo tempo em que ratificamos a validade e vigência do primeiro Pronunciamento, queremos atualizar alguns de seus postulados e propostas, levando em conta as grandes mudanças operadas no mundo e nessa região ao longo da última década.
2. CONTEXTO MUNDIAL E REGIONAL
O mundo que se perfila a inícios do novo milênio Já estamos no novo milênio, que muitos imaginaram como “o futuro” da humanidade poucas décadas atrás, o “mundo pelo avesso” de que fala Galeano: grandes avanços científicos e tecnológicos, ampliação da vida humana, uma nova brecha – a digital – e uma cultura digital que se expande aceleradamente, um planeta ameaçado convivendo com uma maior consciência planetária sobre os riscos do modelo de desenvolvimento e consumo adotado até hoje, maior acesso aos bens culturais e especialmente à cultura audiovisual, uma impensável conectividade facilitada pelas modernas tecnologias, maior capacidade da população de pronunciar-se organizadamente, inclusive por meios virtuais, sobre problemas locais, nacionais e mundiais, avanços importantes nas conquistas das mulheres bem como nas liberdades de expressão, da sexualidade, etc. Velhos e novos problemas ameaçam a vida humana e a do planeta: enquistamento da pobreza, mudança climática, ameaças de fome epidêmica e de guerras pela água, incremento do gasto militar e guerras em distintas partes do mundo, desaparição de línguas e culturas ancestrais, incremento da violência, desemprego, atitudes xenófobas, entre outros. Em plena “Sociedade da Informação” subsistem cerca de 900 milhões de pessoas analfabetas, milhões de meninos e meninas que seguem sem ter acesso à escola, outros tantos milhões de crianças e jovens que tem acesso a ela mas que desistem ou não aprendem nas aulas, porque os sistemas escolares não estão sintonizados com as necessidades das atuais gerações e porque as autoridades, na maioria dos países do mundo, continuam sem dar à educação a importância e a urgência requeridas.
Especificidades da América Latina e Caribe A América Latina e Caribe é um continente diverso, rico em manifestações políticas e culturais, terreno de grandes contradições econômicas e sociais: bem aquinhoada no aspecto humano, no cultural e em seus recursos naturais, e no entanto a região mais desigual do mundo quanto à distribuição da riqueza; a propriedade e o uso da terra continua sendo o grande tema pendente, assim como as precárias condições de vida dos camponeses, em sua maioria sem terra, migrando para as cidades e engrossando as fileiras dos marginalizados urbanos; o trabalho digno escasseia para a gente adulta, mas o trabalho infantil existe em abundância; grande exportadora de alimentos enquanto muitos morrem de fome; um continente que se encheu de imigrantes e que hoje expulsa seus próprios cidadãos para ganhar a vida em outros continentes. Com exceção de Cuba, nossas economias são capitalistas e dependentes. A hegemonia é dos Estados Unidos, seguida da União Européia e, a grande distância, da China, Índia e outras potências emergentes.
Rica em seu poder de criação, a América Latina está ameaçada em alguns de seus aspectos de identidade nacional e regional, frente à homogeneização da cultura, da produção e do consumo imposta pelo mercado. O espírito comunitário, tradicionalmente sustentado pelos povos indígenas, deve ser fortalecido em um mundo que sucumbe aos valores do individualismo, do consumismo e da competência. Continuamos a nos guiar pelos modelos dos países “desenvolvidos”, assumindo que estamos sempre atrás e que avançar significa nos parecer a eles. Todavia, o que se faz no Norte não é necessariamente recomendável para o Sul. Em vez disso, a experiência em países do Norte deveria nos servir para antecipar e evitar caminhos sem saída que eles percorreram e dos quais, em muitos casos, estão hoje de volta.
Ainda que a situação econômica e social das maiorias não seja alentadora, porque os modelos estruturais e os problemas que deles derivam permanecem imutáveis, os últimos anos trouxeram sinais promissores. Dentre outros: eleição democrática de governos de corte progressista em vários países da região, especialmente na América do Sul; adoção de medidas que tendem à proteção de recursos nacionais e à reafirmação da soberania; deflagração de novos mecanismos e instâncias de integração sub regional; novas constituições, na área andina, que reconhecem a plurinacionalidade e a multiculturalidade, e adotam o bom viver como paradigma; políticas e programas orientados pela economia social e solidária –a outra economia- em vários países; participação social incluída em constituições e leis; avanços no reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e das liberdades sexuais; adoção de medidas de proteção social, sobretudo em benefício de crianças e mulheres.
3. A EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA E CARIBE
“Depois de várias décadas de reiteradas tentativas de reforma educacional em nossos países, os resultados são duvidosos e, em todo caso, não se vislumbram no âmbito que finalmente importa e que é o objetivo da educação: a aprendizagem e a formação integral das pessoas” (Pronunciamento Latinoamericano 2000).
Para além de avanços pontuais e de sinais alentadores que sempre se podem encontrar e mencionar, a educação na região continua mostrando falhas estruturais, de concepção e de execução, tanto na ação governamental como na desenvolvida pelos organismos internacionais que fazem cooperação nesta região. Mencionamos três pontos que colocam de manifesto essas deficiências em relação à qualidade, tema crítico e lema das reformas educacionais ao menos nas três últimas décadas. Estamos nos referindo à qualidade da tomada de decisões, à qualidade da cooperação internacional e à qualidade dos resultados no âmbito escolar.
a. A tomada de decisões e a formulação de políticas educativas Continua prevalecendo a idéia de que as políticas, e a política educativa especificamente, é um reduto hermético e especializado, reino de políticos e técnicos nacionais e internacionais que pensam e decidem “lá em cima”, e despacham “para baixo”, para execução, sem a consulta, a participação social e o debate público requeridos. O culto ao saber especializado e à consultoria de pessoas isoladas, assim como o culto aos economistas - e ao economicismo tosco, que vê tudo através da lente do cálculo econômico – se instalaram nas últimas décadas na educação mundial. Este modelo vertical, autoritário e tecnocrático de reforma educacional fracassou nessa região e em outras partes do mundo, como confirma a experiência acumulada; não obstante, segue se repetindo, não só no interior de cada país, mas também em sua relação com os organismos internacionais. Desse modelo surgem reformas que desandam, rechaçadas não apenas pelos educadores, como também pelas próprias realidades e condições nas quais se pretende implementá-las. Desse modelo emergem também os reiterados planos e metas internacionais para a educação, que se atropelam uns aos outros no tempo sem que nenhum consiga finalmente cumprir seus objetivos. A fragilidade de “acordos” nacionais e internacionais é muito grande, ao não contar com a necessária participação, validação e apropriação social, o que resulta em contínuo vai e vem e na histórica ausência de “políticas de Estado” sólidas do ponto de vista político, social e técnico.
b. O labirinto das agendas e das agências internacionais Essa região viu desfilar muitas agendas regionais, continentais e internacionais, cujas metas, ciclicamente, são reiteradas, descumpridas e adiadas. Os planos se superpõem e se manejam de forma paralela, sem coordenação entre si. Assim, nas três últimas décadas, temos:
· Projeto Principal de Educação-PPE (1980-2000). Projeto regional proposto em 1979 no México e adotado em 1981 em Quito, coordenado pela Oficina Regional da UNESCO (OREALC). O PPE colocou três metas para 2000: acesso universal à escola primária, eliminação do analfabetismo e melhoria da qualidade e da eficiência da educação.
· Educação para Todos-EPT (1990-2015). Iniciativa mundial aprovada em Jomtien e ratificada em Dacar, organizada por UNESCO, UNICEF, PNUD, FNUAP e Banco Mundial, coordenada por UNESCO. Seis metas vinculadas à educação básica de crianças, jovens e adultos.
· Projeto Regional de Educação para América Latina e Caribe –PRELAC (2002-2017). Aprovado pelos Ministros de Educação (Havana, 2002) como continuação do PPE, a fim de assegurar o cumprimento das metas da EPT em 2015. Coordenado pela OREALC. Não coloca metas e sim cinco focos estratégicos para apoiar as metas da EPT.
· Programa Interamericano de Educação (1994-2010). Acordado nas Cúpulas das Américas I e II (Miami 1994 e Santiago 1998), coordenadas pela OEA e lideradas pelos Estados Unidos. Três grandes metas: conclusão de uma educação primária de qualidade por todas as crianças; acesso de pelo menos 75% dos jovens a uma educação secundária de qualidade; oportunidades de aprendizagem ao longo de toda a vida a toda a sociedade.
· Metas 2021: “A educação que queremos para a geração dos bicentenários” (2011-2021). Acordadas na XVIII Conferência Ibero americana de Educação (El Salvador, Maio 2008), no marco das Cúpulas e Conferências Ibero americanas coordenadas pela Organização de Estados Iberoamericanos (OEI). Primeiro plano de alcance ibero americano colocado nessa região.
Governos nacionais e organismos internacionais formulam e firmam esses planos, comprometem-se a cumpri-los em prazos que eles mesmos fixam, para logo descumpri-los e iniciar novas agendas no vazio. Nossos povos são, em geral alheios a essas agendas internacionais que se firmam em cúpulas e conferências, e são monitorados em comissões, gerando volumosos informes. Dizemos basta -chega de mais do mesmo- e exigimos mudanças profundas nesse modelo de anti-cooperação internacional, alimentado pela inércia e anuência de nossos políticos e técnicos nacionais.
c. Não melhoram os resultados de aprendizagem no ambiente escolar As políticas que se tem recomendado e adotado nos últimos anos não tem obtido os resultados esperados em termos da desejada “melhoria da qualidade da educação” e das aprendizagens escolares concretas. As duas avaliações realizadas pelo Laboratório Latino americano de Avaliação da Qualidade Educativa (LLECE) coordenado por UNESCO-OREALC, em 1997 e 2006, em 13 e 17 países da região, respectivamente, em estabelecimentos públicos e privados de educação básica, mostram que: a) não há melhoras sustentáveis em nenhum país, apesar dos esforços e de medidas como incremento do orçamento ou do tempo escolar, avaliações periódicas, etc.; b) Cuba é, em ambas as avaliações, o país com melhores desempenhos nas áreas medidas (com uma grande diferença em relação aos demais países participantes nas provas), um país com sérias dificuldades econômicas, o único nessa região que não embarcou em empréstimos nem em assessorias com os organismos financeiros internacionais. Os dados lançados pelo LLECE, sem necessidade de se recorrer a avaliações internacionais como PISA e outras, são o suficientemente contundentes para exigir uma reflexão e revisão de fundo em torno das estratégias de desenvolvimento e mudança educacional que vem se ensaiando nessa região. As assessorias e suas receitas convencionais não funcionaram.
4. PRINCÍPIOS E PROPOSTAS
Iremos expor aqui alguns princípios que, consideramos, deveriam orientar tanto a teoria como a práxis educacional em nossa região nos próximos anos, sem, obviamente, ignorar a grande heterogeneidade dos países e no interior deles.
A educação sozinha não pode “Os problemas não se explicam nem se resolvem exclusivamente desde o educativo, mas desde uma política econômica e social responsável pelo bem estar das maiorias” (Pronunciamento Latinoamericano, 2000). A educação não é um setor autônomo. Depende de decisões econômicas e políticas, além de ser política em si mesma. As instituições educativas não podem, sozinhas, resolver problemas sociais como a pobreza, a fome, a fragmentação familiar, os vícios, a violência, etc. Uma sociedade que não assegura a todos os educandos os meios necessários para aprender, superando as limitações impostas pela desigualdade econômica e social, não deve surpreender-se com resultados de aprendizagem insatisfatórios. A constatação de que à maior pobreza corresponde maior fracasso escolar é bem conhecida e já foi abundantemente investigada. Não há que seguir pesquisando essa correlação óbvia. Há que partir do conhecimento já disponível e atuar coerentemente, distribuindo com justiça os bens de que dispomos.
Direito à educação A educação é um direito fundamental, universal e irrenunciável que pertence a toda pessoa, em todos os momentos de sua vida. Denunciamos o descumprimento desse direito, sem cuja vigência não é possível imaginar existência individual e coletiva digna, nem o gozo dos demais direitos reconhecidos. Enunciar esse direito supõe assegurar a gratuidade da educação (incluindo a eliminação de todo tipo de contribuições e a provisão de materiais de estudo, uniformes, etc.), gratuidade que, salvo escassas exceções, não vigora hoje em nossa região. Respeitar o direito à educação implica muito mais que matricular as crianças na escola, objetivo que já foi atingido na maioria de nossos países. É preciso lidar com os altos níveis de absenteísmo, deserção e repetência que caracterizam a nossos sistemas educativos, assegurar aprendizagens significativas e efetivas, e assumir a sério a proclamação da educação e da aprendizagem como direito a exercer durante toda a vida. Os primeiros anos de vida são fundamentais no desenvolvimento de toda pessoa, o que exige priorizar as crianças pequenas com esforços da maior qualidade, não só dirigidos ao sistema educativo, mas às condições de vida das famílias. É preciso revitalizar o debate e a ação em torno da educação e formação das pessoas jovens e adultas, outrora campo de inovação e militância social, e hoje carente de todo dinamismo, reduzido a intervenções tipo “segunda oportunidade”, como ficou evidente na VI Conferência Internacional de Educação de Adultos – CONFINTEA VI (Belém, Brasil, Dezembro 2009). Longe estamos de uma infância priorizada, de uma sociedade alfabetizada, de uma população com acesso igualitário à cultura escrita, de uma educação básica de qualidade para todos. Nada disso ocorre só por uma questão de métodos, tecnologias ou inclusive de recursos, mas pela vontade política de fazer da educação uma prioridade nacional e uma realidade, assim como pela adoção de medidas que mudem a fundo a pedagogia e a administração dos centros de ensino.
Atenção à diversidade A diversidade é característica de todas as nossas sociedades: está dada por diferenças de idade, gênero, zonas de residência, condição étnica, línguas, situações de trabalho, etc. O direito à educação supõe, portanto, reconhecer a diversidade tanto na definição de políticas como na gestão dos sistemas educativos e das estratégias de ensino e aprendizagem. Os sistemas educativos devem adequar-se aos diversos contextos e aos requisitos específicos dos grupos atendidos. Os povos indígenas conquistaram o direito de serem educados em suas próprias línguas e culturas, e tem conseguido nos últimos anos importantes avanços na legislação nacional e internacional a respeito; não obstante, a brecha entre a normativa e seu cumprimento continua sendo grande. É preciso reiterar a necessidade de se atender de maneira prioritária e diferenciada às zonas rurais, em relação às urbanas. A ampliação do tempo de vida exige pensar em programas e estratégias diferenciadas para atender a distintos segmentos de idade categorizados genericamente como “adultos”, categoria que abarca desde jovens até pessoas da terceira idade. São inegáveis os avanços rumo a uma “educação inclusiva”, mas persiste a debilidade das instituições regulares para atender necessidades especiais, bem como das próprias instituições de educação especial, área que requer investigação, experimentação, formação de pessoal especializado e mais recursos econômicos. Exigências semelhantes valem para os programas que atendem a pessoas em contextos prisionais.
Participação social Reiteramos a necessidade da “participação da sociedade não só na execução das políticas e programas, mas em sua formulação e discussão. A educação é assunto público e deve, portanto, envolver a todos seus atores e convocar sua participação responsável” (Pronunciamento do ano 2000). Esse princípio, já consagrado na legislação de vários países, deve aplicar-se, em todos os casos, aos educadores, que tem o direito e o dever de robustecer, com seu saber e seu compromisso, a marcha da educação do povo. Da mesma forma, é fundamental dar a máxima abertura à participação das mulheres e dos jovens, que vem demonstrando crescente protagonismo no campo educativo e uma grande capacidade no trato de seus problemas e na crítica da sociedade. Enfatizar a importância da participação social não implica, em nenhum caso, fazer retroceder a importância das obrigações do Estado, como garantidor do direito à educação.
Os educadores. Diante da persistente desvalorização da profissão docente e dos educadores por parte da sociedade, secundada pela mídia, reafirmamos que os educadores constituem a coluna vertebral de nossos sistemas educativos e fazemos um apelo para que se interrompa a campanha de desprestigio e se dê alento ao reconhecimento social ao seu labor. Não há tecnologia capaz de superar a ação de um bom educador. Nenhuma reforma educacional pode efetivar-se sem contar com a vontade, a participação e a colaboração dos educadores. A condição de bom educador não se valoriza nem se melhora através de provas e avaliações de desempenho docente. O aperfeiçoamento do ensino não se alcança via incentivos aos educadores; isso implicaria assumir que basta lhes oferecer um complemento salarial para que façam bem seu trabalho. A questão docente passa hoje não apenas por melhorias salariais, mais e melhor formação e capacitação, melhores condições de trabalho -todos eles aspectos que requerem atenção prioritária- mas, além disso, por uma recolocação integral do papel e do ofício de educar, dentro e fora do sistema escolar. Isso exige reabrir espaços de diálogo, reflexão e debate social, com participação ativa dos educadores, a fim de clarificar a encruzilhada atual e definir novos perfis e rumos para a profissão.
Centralidade do pedagógico A tradicional ênfase concedida, no campo educativo, à questão financeira e orçamentária (entendida usualmente como mais recursos e não também como melhor uso de tais recursos), e a ênfase dada nos últimos anos à questão administrativa e, mais recentemente, à dotação de computadores no âmbito escolar, tem contribuído para sepultar os aspectos substantivos da educação: o para que, o que e como se ensina; o para que, o que e como se aprende. De nada servem uma grande infra estrutura e um magnífico equipamento sem projeto pedagógico e sem sujeitos e relações capazes de encarná-lo. A questão curricular e a questão pedagógica, estreitamente vinculadas, tem ocupado e seguem ocupando os últimos lugares –em vez de os primeiros- da preocupação educativa. A própria atenção à aprendizagem tem sido surpreendentemente descuidada no campo da educação, reduzida a desempenho no caso da educação escolar. Por outro lado, o campo educativo é campo interdisciplinar, que reclama saberes diversos e ação colegiada em todo o processo, desde a formulação das políticas até a ação pedagógica. Conseguir um trabalho inter e multidisciplinar não consiste em um simples repartir de funções especializadas, mas na compreensão global do fato educativo, na complementaridade dos diversos saberes, no trabalho em equipe e no apoio mútuo entre seus membros. Há que se articular educação com cultura, com ciência, com arte, com recreação, com esporte, com filosofia, com trabalho intelectual e manual.
O sentido da educação e da construção da cidadania É missão da educação contribuir para desenvolver plenamente as capacidades e talentos, o pensamento crítico, a consciência social, o respeito aos demais, o reconhecimento da diversidade, a cooperação, a solidariedade, a vocação do serviço, o consumo responsável, os conhecimentos, atitudes e valores indispensáveis para cuidar da natureza, melhorar a própria vida e a dos demais, assegurar o bom viver de todos. Não se trata apenas de educar para, mas nesses valores, na família, no sistema escolar, na comunidade, no trabalho, no mundo virtual. Deve-se esperar que a educação contribua para a construção da cidadania, facilitando o conhecimento e o exercício de direitos e deveres, assim como o desenvolvimento de uma consciência local, nacional e mundial. Promover uma cultura de paz significa rechaçar toda forma de violência, incluída a gerada por preconceito, injustiça social, pobreza, discriminação de todo tipo, racismo e machismo. Criar consciência cidadã sobre o direito à educação e o direito a exigir seu cumprimento é tarefa educativa por excelência, a ser assumida pelo Estado, pela sociedade civil, instituições educativas e meios de comunicação.
Tecnologias As tecnologias e sua vinculação com a educação tem uma longa história nessa região, estreitamente ligada ao desenvolvimento mesmo das tecnologias e da educação a distancia. O rádio e a televisão, as tecnologias mais disseminadas e ainda não totalmente aproveitadas com fins educativos, foram avassaladas pelas modernas TICs. O acesso ao computador e á Internet vem avançando por meio de lan-houses e tele centros em zonas urbanas e urbano-periféricas, e mais recentemente, através das instituições educativas, bem como bibliotecas, centros comunitários, etc. O telefone celular, a tecnologia digital mais versátil e mais rápida e amplamente difundida na região, revolucionou a comunicação interpessoal de vastos setores da população e leva a crer na possibilidade real de considerá-la a tecnologia do futuro, mais que o próprio computador. Os efeitos positivos das TIC são inegáveis não só em termos de informação e comunicação, mas de expressão e de aprendizagem. Para os setores mais desfavorecidos, podem resultar em uma ajuda inestimável, em muitos âmbitos e uma fonte de dignidade e de auto estima.
A introdução apressada das TICs no sistema escolar, destinada entre outros fins a “reduzir a brecha digital”, está criando inumeráveis possibilidades, mas também novos problemas. Á brecha geracional se agrega a brecha específica entre docentes e alunos (reforçada por planos que privilegiam a esses últimos), o aprofundamento da brecha urbano-rural (com as zonas rurais mal equipadas para acessar as TICs por problemas do serviço elétrico e de telefonia), e as brechas derivadas da rapidez no acesso à Internet e da rápida obsolescência dos equipamentos e programas informáticos.
As políticas das TICs e, especialmente, de oferta de computadores às instituições escolares passaram a ser um campo a mais de decisões herméticas, tomadas nos níveis mais altos, comprometendo recursos milionários e redundando em um grande negócio para as multinacionais que ofertam produtos e serviços. O Banco Mundial já se adiantou em anunciar as estratégias 1:1 (um computador por aluno) como uma “tendência mundial” nos sistemas escolares. Ressalta nesses esquemas a ênfase conferida ao equipamento, a escassa atenção brindada aos docentes e a ausência de estratégias pedagógicas para o uso dos computadores no sistema escolar e na sala de aula. Esses esquemas, já operando ou se iniciando em alguns países da região, vão decantando lições importantes, e todas apontam para a necessidade de investigar e experimentar antes de seguir massificando programas.
Os meios de comunicação e a educação Muito se tem falado sobre a má influência dos meios de comunicação de massa –em particular a televisão– sobre a população e, especialmente, sobre a infância e a juventude: o fomento do consumismo e do arrivismo, a violência, a cultura light, valores e padrões de vida estrangeirados (sobretudo norte americanos), a banalização do conhecimento e do saber, etc. Múltiplos estudos confirmam os efeitos nocivos que pode ter a alta exposição à televisão; a experiência adulta nos indica, por outro lado, a alta capacidade de desinformação e manipulação de meios nacionais e estrangeiros em sua função informativa, supostamente primordial. Não obstante, é preciso ter em conta que os meios podem ser também –e são com efeito muitas vezes- aliados poderosos da informação, da comunicação e da educação cidadãs, e da educação escolar especificamente. “Aumentar a aquisição, por parte dos indivíduos e das famílias, de conhecimentos, capacidades e valores necessários para viver melhor e alcançar um desenvolvimento racional e sustentável por meio de todos os canais da educação, incluídos os meios de informação modernos, outras formas de comunicação tradicionais e modernas, e a ação social…” foi uma das metas da Educação para Todos adotada em 1990 em Jomtien. Não obstante, nada disso se fez; a meta não foi avaliada e logo foi eliminada das metas da EPT aprovadas em 2000, em Dacar. Com isso, a EPT voltou a ser uma plataforma educativa eminentemente escolar. É hora de tornar a incluir os meios na agenda educativa. De fato, passaram a ser reconhecidos como a “outra escola”. A boa televisão, o bom rádio, o bom jornalismo escrito, podem ser suportes fundamentais do sistema escolar, da educação familiar e comunitária, da construção de cidadania informada e crítica. Da mesma forma, resulta indispensável retomar a leitura crítica dos meios como um componente indispensável na formação de toda pessoa, educandos e educadores.
Financiamento da educação Vários países da região realizaram avanços relativos ao financiamento da educação pública, entre outros através de novas políticas de arrecadação tributária. Não obstante, na maioria, há estancamento ou retrocesso. A heterogeneidade de realidades não permite fixar uma meta orçamentária uniforme para a educação nos diferentes países. Não devemos dar-nos por satisfeitos quando nos dizem que se fez todo o esforço possível; necessitamos exigir que a dotação corresponda aos recursos necessários. Uma vez mais devemos recordar que ALC é uma região rica, e, no entanto, é a que distribui da pior maneira a riqueza. É forçoso revisar as políticas econômico-sociais, retificar a definição de prioridades, erradicar a corrupção, evitar o desperdício, negar-nos a contrair novas dívidas externas e a aceitar as trocas como estratégia de financiamento, revisar os subsídios que se outorgam à educação privada e encarar uma decidida política de redução do gasto em matéria de defesa. É dever de todo estado democrático oferecer educação básica de boa qualidade a seus cidadãos, sem ter que depender para isso de financiamentos internacionais.
Aliança com o povo. Essas reflexões e propostas de ação nutrem-se de uma prolongada experiência de ver os sistemas educativos expostos a um constante vai e vem que corresponde mais a mudanças de governo ou de administração que a mudanças necessárias e fundamentadas. Nesse vai e vem, os que estamos no fazer educativo não devemos perder de vista que nosso trabalho tem uma âncora no contato com os setores populares. E não apenas contato, mas em uma aliança com o povo, que utiliza, apóia e confia nos serviços educativos do setor público. Os governos variam, deslegitimam o realizado por governos anteriores e amiúde destroem avanços que haviam requerido ingentes recursos e muitos anos de fé e de empenho. Tudo isso reforça a necessidade de um permanente compromisso com o povo, garantidor da continuidade da ação educativa, de cuja voz, organização e força depende a conquista efetiva do direito à educação, sujeito merecedor de todo esforço em favor não só de uma educação melhor, mas de outra educação.
5. CHAMADO
Os educadores de seis países da América Latina participantes do II Encontro Presencial de Signatários do Pronunciamento Latino americano por uma Educação para Todos e I Encontro Presencial da Comunidad E-ducativa damos a conhecimento público esse segundo Pronunciamento Latino americano. Fazemos um chamado a dirigentes, educadores, estudantes, pais e mães de família, meios de comunicação e a todos os interessados na questão educativa, convidando-os a que estudem esse documento, promovam sua difusão e debate, assim como a adoção das recomendações que aqui se colocam.
Buenos Aires, Argentina, 11 de Setembro de 2010.
Para aderir ao Pronunciamento, envie uma mensagem a pronunciamientolatinoamericano@yahoo.com indicando nome completo, documento de identidade, instituição/organização, cidade e país. Roga-se indicar se deseja participar da comunidade virtual de signatários desse II Pronunciamento.
Tradução: Madza Ednir, São Paulo